— Do que disse aos outros, do que disse a muita gente como Mrs. Snow, por exemplo. Mas o pobre anjinho põe-se a chorar, porque acha que não é a mesma coisa. Diz que é fácil ensinar aos paralíticos, como Mrs. Snow, a serem contentes, mas que tudo muda quando o paralítico é a gente. E repetiu cem vezes para si mesma que devia ficar contente de que todo o mundo não esteja paralítico como ela, sem que conseguisse ficar contente, porque uma ideia não lhe sai da cabecinha... a ideia de que nunca mais poderá andar.
Nancy fez uma pausa, que não foi interrompida pelo homem, o qual se sentara de mãos nos olhos.
— Depois eu procurei lembrar-lhe uma coisa que ela dizia sempre... que o jogo era tanto mais bonito quanto mais difícil e ela respondeu que estava errada quando pensava assim... que o jogo fica muito diferente quando o caso é dos duros de roer. Preciso ir. Com licença. — Nancy voltou-se de brusco, não podendo mais conter um acesso de choro.
Na porta de entrada hesitou e, virando-se para o homem, disse:
— Posso contar a Miss Pollyanna que... por exemplo, o Jimmy Bean apareceu por aqui outra vez?
— Mas não é verdade, moça. Esse menino não apareceu mais aqui.
— Não faz mal. É que isso é uma das coisas que mais a aborrece, pois ficou de vir aqui com ele e não pôde... por causa da peste do automóvel. Raios o partam! Desculpe, senhor. Eu às vezes esqueço com quem estou falando... ela disse que trouxe Jimmy uma vez, mas que ele não se comportou muito bem e a coitadinha ficou com receio que o senhor não tivesse gostado dele. O senhor há de saber do que se trata... eu não sei.
— Sim, sei o que ela quer dizer.
— Muito bem, meu senhor. Ela estava ansiosa de vir com ele outra vez para mostrar que ele era realmente uma linda presença de criança... e não pôde por causa daquela peste fedorenta. Desculpe, senhor, e passe bem.
Toda a cidade de Beldingsvile ficou logo sabendo o que o especialista de Nova York pensava da menina, isto é, que nunca mais poderia andar... e nunca uma cidade ficou tão agitada por uma notícia. Todos já conheciam a viva menina de pele preta que era uma alegria andando. E também quase todos já sabiam o seu jogo do contente. E pensar que a encantadora carinha alegre jamais passaria por aquelas ruas! Nunca mais a terem por lá proclamando as maravilhas do seu jogo. Era incrível, inconcebível e de uma crueldade infinita.
Nas cozinhas e nas salas de visita, nos quintais e nas ruas, mulheres comentavam o caso e choravam decoração. Nas esquinas e praças também homens faziam o mesmo... e muitos escondiam o rosto, ou disfarçavam, para esconder alguma lágrima inconveniente. E esse sentimento geral ainda aumentou quando Nancy trouxe a notícia de que Pollyanna estava sobretudo desesperada, porque não podia mais jogar o seu jogo... e não podia, portanto, ficar contente de coisa nenhuma.
Isso fez com que todos os amigos da menina tivessem o mesmo pensamento. Visitá-la. E o solar dos Harringtons, com surpresa de Miss Polly, tornou-se um centro de romaria. Eram visitas e mais visitas, de gente que conhecia e de gente que nunca tinha visto antes... homens, mulheres e crianças. Miss Polly ficou assombrada de verificar quanta gente conhecia a menina.
Alguns ficavam sentados por cinco ou dez minutos. Outros paravam nos degraus da escada, de chapéu ou bolsa na mão, conforme o sexo. Uns traziam livros, flores, doces de tentar iludir o paladar. A maior parte chorava sem nenhum acanhamento; outros fungavam tanto e lidavam tanto com o nariz que os transformavam em pimentões. E todos deixavam recados ou bilhetes para a doentinha. Atender a essa gente tornou-se a grande ocupação de Miss Polly.
Mr. Pendleton veio outra vez e ainda de muletas.
— Não preciso lhe dizer, Miss Harrington, que choque senti quando Nancy me levou a opinião do especialista. Mas, na realidade, não se poderá fazer alguma coisa?
Miss Polly fez um gesto de desespero.
— Estamos fazendo tudo, todo o tempo. O doutor Mead prescreveu um certo tratamento que talvez dê resultado e o doutor Warren está seguindo à risca as suas prescrições. Mas... o doutor Mead não tem grandes esperanças.
John Pendleton ergueu-se de brusco, muito pálido, e Miss Polly compreendeu, porque suas visitas eram tão curtas. Na porta, ele disse:
— Tenho um recado para Pollyanna. Faça-me o obséquio de lhe dizer que Jimmy Bean apareceu e que está morando comigo; ficará sendo meu filho adotivo. Diga-lhe isto; estou certo de que vai ficar contente com a novidade.
Por um breve momento Miss Polly perdeu a sua firmeza habitual.
— O senhor vai adotar Jimmy Bean?
O homem levantou a cabeça.
— Sim. Pollyanna me compreenderá. Diga-lhe que espero que fique contente com isso.
— Sem dúvidas, mas...
— Passe bem e muito obrigada. — disse Mr. Pendleton, retirando-se.
Miss Polly ficou na soleira da porta, imóvel, a olhar atônita para o homem que lá se ia apoiando nas suas muletas. Não podia acreditar no que ouvira. John Pendleton adotando Jimmy Bean! John Pendleton, rico, independente, solitário, conhecido como avarento e tremendamente egoísta, adotar aquele menino... aquele pequeno mendigo...!
E foi com o olhar parado que Miss Polly subiu ao quarto da menina.
— Pollyanna, tenho um recado de Mr. Pendleton para você. Esteve cá ainda há pouco. Pediu-me para contar que recebeu o menino Jimmy em sua casa a fim de adotá-lo como filho. Disse que espera que você fique contente com a notícia.
A carinha triste da menina tornou-se lindo de súbita alegria, embora linda ela já fosse!
— Contente? Contente? Ô, certo que fiquei e muito! Tia Polly, eu quis tanto descobrir um meio de arrumar a vida de Jimmy! E consegui. Está ele com a vida feita!
Também estou muito contente por Mr. Pendleton. O pobre vai ter agora em casa o que tanto queria... uma presença de criança.
— Presença de criança? Que história é essa?
Pollyanna suou de leve. Lembrou-se que jamais falara à sua tia de Mr. Pendleton querer adotá-la como filha... e que nunca pensou em contar-lhe isso para que não passasse pela cabeça da querida tia uma dúvida. A dúvida de que ela, Pollyanna, tivesse desejado semelhante coisa.
— Presença de criança, sim? — repetiu a menina. — Sabe o que é? Uma vez Mr. Pendleton me disse que só uma mão de mulher ou uma presença de criança pode fazer de uma casa um lar. E eu arranjei para ele uma presença de criança.
— Ô, compreendo. — murmurou Miss Polly; e na realidade compreendeu mais do que Pollyanna podia esperar. Compreendeu e sentiu em si o aperto de coração que deveria ter sentido a menina quando Pendleton lhe propôs que fosse morar com ele e ser a presença de criança daquela casa triste. E lágrimas caíram dos olhos de Miss Polly.
Pollyanna receou que sua tia insistisse naquele assunto embaraçante e tratou de mudar de conversa.
— Também o doutor Chilton diz que é preciso uma mão e um coração de mulher ou uma presença de criança para fazer um lar. — Observou ela.
Miss Polly voltou-se vivamente.
— Doutor Chilton? Como sabe disso, Pollyanna?
— Ele mesmo me disse, quando falou que quem vive em quartos e salas não vive em um lar.
Miss Polly guardou silêncio, com os olhos na janela.
— E eu, — prosseguiu Pollyanna. — perguntei-lhe por que motivo não arranjava essa mão de mulher e essa presença de criança...
— Pollyanna! — exclamou Miss Polly, corando vivamente.
— Perguntei, sim. Ele estava com uma cara tão triste!
— E... e que respondeu ele? — indagou Miss Polly, como se qualquer coisa lá por dentro a impelisse, mesmo contra a sua vontade.
— Não disse nada por uns instantes. Depois murmurou baixinho que a gente nem sempre consegue o que deseja.
Fez-se uma pausa de silêncio. Miss Polly voltou novamente os olhos para a janela. Tinha o rosto ainda em fogo.
Pollyanna suspirou.
— Ele quer uma, eu sei... uma mulher... e eu ficaria bem contente se conseguisse dar-lhe essa mulher.
— Como pode saber disso, Pollyanna? Como pode saber que ele quer uma... esposa?
— Porque no dia seguinte ele disse mais umas coisas. Disse baixinho, mas bem ouvi. Disse que daria tudo na vida para ter em sua casa uma mão de mulher e um coração. Que é isso, tia Polly? Que aconteceu?
Miss Polly erguera-se agitada e correra à janela.
— Nada, minha cara. Vim mudar a posição deste prisma...
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