Brasil.
Domingo, 06 de novembro de 2022.
03:00 da manhã.
JOHN PENDLETON.
NO DIA SEGUINTE Pollyanna não foi para a escola, nem no dia depois do dia seguinte. Ela, entretanto, não percebeu isso, exceto nos breves instantes de lucidez que sobrevinham a espaços. Só depois de passada uma semana é que pôde alcançar em toda a sua extensão a desgraça que lhe havia sucedido; a febre começou a cair e seu espírito voltou ao normal. Soube então do acidente com todos os detalhes.
— E os do automóvel não ficaram feridos? Muito bem. Posso ficar contente disso.
— Contente, Pollyanna? — inquiriu sua tia, que estava sentada ao seu lado.
— Sim. Eu prefiro ter as pernas partidas, como Mr. Pendleton, a ser paralítica pela vida inteira como Mrs. Snow, a senhora sabe. Pernas quebradas consertam-se; mas os paralíticos não saram nunca.
Miss Polly, que nada havia dito sobre pernas quebradas, levantou-se de súbito e foi para a pequena penteadeira do quartinho, onde ficou a pegar um objeto e outro, numa indecisão bem fora de seu caráter. Tinha o rosto bastante abatido e pálido.
A menina piscava da cama para as cores irrequietas que um prisma pendurado à janela punha no forro.
— Fico muito contente que não seja varíola o que eu tenho. — murmurou de súbito, rindo-se. — Varíola ainda é pior que sarda. Também fico muito contente que não seja tosse comprida... conheço essa peste! E também de não ser apendicite, nem catapora, porque catapora pega e se fosse catapora eu tinha de ficar aqui sozinha.
— De quantas coisas está você contente hoje, minha cara! — balbuciou Miss Polly, levando a mão à garganta como se estivesse estrangulada.
A menina sorriu e respondeu:
— Estou, sim, de muitas. Estive pensando em montes de doenças, enquanto olhava a brincadeira das cores do prisma no forro. Gosto de arco-íris. Foi tão bom que Mr. Pendleton me desse os pingentes! Estou contente ainda de muita coisa que não disse... e quase que estou contente de ter sido atropelada pelo automóvel.
— Pollyanna!
A menina sorriu de novo, daquele seu modo todo especial, com os olhos luminosos voltados para a tia.
— Sim, sim! Desde que fui atropelada a senhora começou a chamar-me "minha cara"... uma palavra que nunca ouvi antes. Gosto de ser chamada "cara"... mas por gente de casa, por parentes, como a senhora. Certas damas lá da minha Auxiliadora usavam também essa expressão, e era muito gentil da parte delas; mas com a senhora é diferente... vale muito mais. Oh, fico tão alegre quando me lembro que a senhora é minha tia!
Miss Polly não respondeu. Tinha ainda a mão na garganta e os olhos marejados de lágrimas. Súbito, fugiu do quarto, ao ver que a enfermeira vinha entrando.
Foi nesse dia, à tarde, que Nancy correu para o velho Tom, que estava polindo arreios na cocheira. Os olhos da moça tinham uma expressão de assombro.
— Mr. Tom, Mr. Tom, adivinhe o que aconteceu! — disse ela ao chegar, ainda arquejante. — Adivinhe, se é capaz... dou-lhe mil anos!
— Se me dá mil anos para adivinhar, é que a coisa é dura... e desisto, mesmo porque, velho como estou, não posso viver mais uns dez. O melhor, Miss Nancy, é ir contando, sem mais embroma.
— Pois então ouça. Quem o senhor imagina que está na sala de visitas com a patroa? Quem? Diga!
O velho Tom meneou a cabeça.
— Não posso dizer. Não sou desses mágicos que enxergam através das paredes.
— Não pode mesmo. Nem que morresse de matutar. Mr. Pendleton!...
— Eh! Você está caçoando, Nancy. Impossível.
— Verdade, sim. Ele, com muleta e tudo. O homem que não falava com ninguém, que não visitava ninguém. O "pancada", o malcriado, o homem do "escaleto" do armário. Pense nisso, Mr. Tom... pense em Mr. John Pendleton visitando Miss Polly!
— E por que não? — observou o velho, que não via impedimento absoluto para aquela visita.
Nancy olhou-o de um modo que dizia mil coisas.
— Ah! Como se Mr. Tom não soubesse muito melhor que eu! Para cá vem de carrinho...
— Eu?
— Oh, não faça cara de inocente. — disse a moça, em tom de falsa indignação. — Foi o senhor mesmo que me pôs na pista do grande segredo.
— Que é que está aí a asnear, moça? Não estou entendendo coisa nenhuma, palavra.
Nancy deu uma cautelosa olhadela em redor e aproximou-se do ouvido do velho.
— Escute. Não foi o senhor quem disse, naquele dia, que Miss Polly tinha tido um namorado, lembra-se? Pois muito bem: eu fui ligando os acontecimentos e descobri por mim mesma quem era o tal!...
Com um momo de decepção o velho Tom sorriu e voltou ao serviço.
— Se quer conversar comigo, trate de ter senso. — declarou ele. — Estou muito velho para ouvir bobagens.
Nancy deu uma risada.
— Pois fique certo que descobri tudo. Ele é o antigo namorado de Miss Polly. Juro!
— Mr. Pendleton? — e o velho Tom arreganhou os dentes num riso incrédulo.
— Ele, sim. Agora sei muito bem
— Nada disso, Nancy. Você nasceu ontem. Mr. Pendleton foi, mas foi o namorado da mãe dessa abençoada menina, isso sim.
— Hum! — fez a moça, desnorteada. — Compreendo agora!... Por isso que ele tanto quis que a menina fosse... ah, ah...
Aqui teve um fingido acesso de tosse, pois lembrou-se que Pollyanna lhe contara tudo sob promessa de o não passar a ninguém. E mudou de rumo.
— Andei preocupada com isso, Mr. Tom, indagando de muita gente velha, e soube que ele e Miss Polly tinham sido namorados ou amigos nos velhos tempos, e que depois ela passou a detestá-lo por causa de uns boatos a respeito.
— Isso é fato. — confirmou o velho. — Foi três ou quatro anos depois que Miss Jennie deu o contra ao amor de Mr. Pendleton e casou-se com outro... o pai de Miss Pollyanna. Miss Polly sabia do amor de Mr. Pendleton, teve dó dele e procurou ser amável com ele. Talvez ela tenha sido amável demais... e isso por ter ódio ao tal ministro que levara Miss Jennie. Começaram então os mexericos. Diziam as más línguas que Miss Polly andava caçando Mr. Pendleton.
— Caçando um homem? Ela? Que disparate!...
— Eu sei. Mas as más línguas espalhavam isso, — continuou Tom. — e nenhuma Missão de condição pode suportar semelhante afronta. E no mexerico veio o rompimento com o verdadeiro namorado. Desde então Miss Polly fechou em copas, qual ostra, e não quis saber de mais ninguém. Azedou até ao fundo da alma.
— Ah! Está tudo claro agora! — exclamou Nancy. — Mas o caso é que uma pessoa ia me derrubar no chão com uma pena, quando vi Mr. Pendleton na porta, à espera da criatura com a qual não falava desde anos e anos. Introduzi o homem na sala e corri cá a lhe contar o caso, Mr. Tom.
— Que disse ela, quando você anunciou Mr. Pendleton?
— Nada, no começo. Ficou tão muda que até pensei não ter-me ouvido. E já eu ia repetindo o anúncio, quando me respondeu: "Diga a Mr. Pendleton que descerei num momento.". E eu vim cá, correndo, contar-lhe a novidade, Mr. Tom. — concluiu Nancy, com um novo olhar de inspeção em redor.
— Hum! Hum! — rosnou o velho, voltando ao seu serviço sem mais palavras.
Na cerimoniosa sala de visitas do solar dos Harringtons Mr. John Pendleton não teve de esperar muito tempo; breve um ruído de passos anunciou a aproximação da dona da casa. Mr. John tentou levantar-se da poltrona em que se sentara, mas foi detido por um gesto de Miss Polly, gesto de esteja a gosto. Não houve apertos de mão e o rosto da grande dama mostrava-se de uma fria reserva.
— Vim fazer uma visita a Miss Pollyanna. — disse ele, um tanto bruscamente.
— Obrigada. Pollyanna vai indo na mesma. — respondeu Miss Polly.
— Não pode dizer-me qual o seu estado? — insistiu o homem, já com a voz menos firme.
Uma sombra de amargura perpassou pelas feições de Miss Polly.
— Não posso... e bem desejaria podê-lo!
— Quer dizer que ignora o seu estado real...?
— Isso mesmo.
— Mas... o doutor? Que diz ele?
— O doutor Warren também se vê no ar. Está agora em correspondência com um especialista de Nova York, com o qual vai ter um encontro aqui.
— Mas... mas quais são os ferimentos que foram constatados.
— Um corte na cabeça, coisa leve; várias contusões e qualquer coisa na espinha, que parece ser a causa da paralisia dos membros inferiores.
Um gemido irrompeu na sala... gemido abafado vindo do fundo do coração. Fez-se penoso silêncio, ao termo do qual Mr. Pendleton inquiriu:
— E Pollyanna? Como recebe isso?
— A coitadinha nada compreende... ou não sabe ainda o que lhe sucedeu. Eu não posso abrir-me com ela. Não posso!
— Mas é preciso. Ela precisa saber toda a verdade.
Miss Polly levou a mão à garganta, naquele gesto ultimamente tão repetido.
— Oh, sim. Já sabe que não pode mover-se, mas pensa que está de pernas quebradas. E diz que está contente com isso, pois é muito melhor ter as pernas quebradas do que cair na paralisia por toda a vida, como Mr. Snow. Fala disto o tempo inteiro e me corta o coração.
Apesar de ter os olhos tolhidos pelas lágrimas, Mr. Pendleton pôde ver como o rosto de Miss Polly estava marcado de todas as impressões de uma dor imensa. Involuntariamente seus pensamentos voltaram-se para o passado... para a conversa em que Pollyanna confessara não poder aceitar o seu convite... "Oh, não posso deixar tia Polly... agora!" E foi a lembrança disso que o fez dizer com toda a lealdade, logo que pôde controlar-se:
— Não sei se a senhora sabe, Miss Harrington, mas fiz tudo para que Pollyanna fosse morar comigo.
— Com o senhor? Pollyanna?...
O homem piscou várias vezes, mas conservou a calma da voz.
— Sim. Eu queria adotá-la como filha, a senhora compreende, fazendo-a a minha herdeira única.
Miss Polly serenou um bocado à lembrança do brilhante futuro que para a sobrinha seria semelhante adoção, e lamentou lá no íntimo que Pollyanna não fosse de mais idade... e mais mercenária... para deixar-se tentar por aquela maravilhosa perspectiva.
— Gosto muito de Pollyanna. — continuou Mr. Pendleton. — Gosto dela duas vezes... por Pollyanna em si e por ser filha de quem é. Era meu sonho dedicar a Pollyanna todo o imenso amor, que conservei oculto comigo durante vinte e cinco anos.
Amor...
Miss Polly recordou-se das razões que tinham-na movido a receber aquela menina, e depois relembrou as palavras de Pollyanna pela manhã: "Gosto de ser chamada "cara", mas por gente de casa, por parentes, como a senhora.". E era aquela menina sequiosa de afeição que tinha recebido a oferta de um amor acumulado por vinte e cinco anos. Com o coração apertado, compreendeu tudo, afinal. E também compreendeu outra coisa... a tristeza que seria sua vida sem Pollyanna ao lado.
— Bem! — exclamou ela, e o homem viu que esforço de dominação ela fazia para receber o fim da história... talvez uma sentença cruel.
— Mas Pollyanna recusou-se a aceitar o meu convite. — declarou Pendleton, com um sorriso melancólico.
— Como? Por quê?
— Não quis deixar Miss Harrington. Disse que a senhora havia sido sempre muito boa para ela e pois desejava permanecer aqui, embora ainda não soubesse se era querida...
Mr. John ergueu-se sem olhar para a interlocutora e dirigiu-se resolutamente para a porta. Mas percebeu que ela o acompanhava com a mão estendida.
— Quando o especialista vier saberemos de mais alguma coisa... de algo definido a respeito da nossa doentinha e avisarei ao senhor do que houver. — rematou Miss Polly, apertando-lhe a mão. — Adeus e obrigada de ter vindo. Pollyanna vai ficar muito grata.
Foi assim que os dois se despediram. 🦋
Esse foi o 24° capítulo!
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