— Não é jogo, não, Miss Pollyanna. Não pensei no jogo. A senhora parece não compreender o que significa o fato de Miss Polly aborrecer-se por sua causa, menina!
— Aborrecer-se significa aborrecer-se... e aborrecer-se, seja lá pelo que for, é uma coisa horrível. Que mais poderia significar?
— Vou dizer. Significa que ela está agora mais humana, está criando coração, como toda a gente. Já não é o tal de dever o tempo inteiro.
— Como, Nancy? — objetou Pollyanna, escandalizada. — Tia Polly sempre cumpre o seu dever. É uma "escrava do dever". — disse, repetindo a expressão de Mr. Pendleton.
Nancy deu uma risada gorda.
— Isso lá é... sempre foi! Mas está agora diferente, depois que a menina veio.
— Era o que ia perguntar, Nancy. — disse Pollyanna, com a testa franzida. — Acha você que tia Polly gosta de ter-me em sua companhia? Ficaria aborrecida se eu fosse para outro lugar?
Essa pergunta era de muito tempo esperada por Nancy... e receada, pois não saberia como responder sem chocar a menina. Mas agora, diante de novos fatos, como aquele de a mandar ao seu encontro com o guarda-chuva, Nancy até ficou satisfeita de ser perguntada. Estava certa de poder dar uma resposta que não fizesse mal ao coração de Pollyanna.
— Se gosta de ter a senhora em sua companhia? Se acharia falta na senhora, caso se fosse? — repetiu a rapariga, com voz vibrante. — Nem pergunte! Não me mandou correndo com o guarda-chuva, só porque viu uma nuvem no céu? Não a fez mudar-se para baixo, de modo que a menina tivesse as coisas que desejava? Oh, quando a gente compara a Miss Polly de hoje com aquela do começo, que até odiava...
Nancy tossiu para corrigir uma frase que ia avançando muito longe.
— E há ainda muitas outras coisas que mostram como a senhora foi amansando Miss Polly, e melhorando o coração dela... o caso do gatinho e do cachorro, e tantos outros. Nem preciso responder, Miss Pollyanna, se ela sentiria a sua ausência da casa ou não. — terminou a rapariga com entusiasmo, na certeza em que se achava de ser assim mesmo. Apesar disso não contou com a repentina alegria que viu estampar-se no rosto da menina.
— Oh Nancy! Estou tão contente! Tão, tão, tão contente! Você nem calcula o prazer que sinto em saber que tia Polly me quer de coração!
"Deixá-la agora? Impossível!" — foi pensando Pollyanna ao dirigir-se para seu quarto. — "Eu sempre reconheci que devia viver com ela... mas ignorava que ela quisesse viver comigo. Agora sei..."
O problema de levar a Mr. Pendleton a sua decisão final não foi nada fácil, e muito vacilou a menina. Gostava muito de John Pendleton, e sentia grandemente os seus males de coração. Aquela vida solitária o tinha feito bastante infeliz, e tudo por ter amado demais à sua mãe. E na imaginativa retraçou o quadro do velho solar, quando o homem sarasse e voltasse à vida antiga... outra vez solitário, sem quem o servisse, sozinho naqueles cômodos silenciosos e cobertos de pó. Se ele encontrasse... se ele encontrasse alguém que... e neste ponto Pollyanna deu um grito de alegria. Havia achado a solução.
Febril com a nova ideia, correu logo que pôde em procura do homem. Na grande biblioteca sentaram-se os dois e puderam conversar à vontade.
— Então, Pollyanna, está resolvida a vir jogar o jogo do contente comigo, pelo resto da vida? — perguntou ele, ansiosamente.
— Sim! — gritou a menina. — Pensei muito nisso e descobri com quem o senhor pode ser feliz.
— Só com você, Pollyanna. Bem sabe disso.
— Não; só comigo não. Há mais gente no mundo.
— Pollyanna, pelo amor de Deus não me desiluda. Não me diga não! — implorou ele.
— Eu... eu tenho que dizer não, Mr. Pendleton. Já declarei que pertenço à minha tia.
— Falou-lhe nisso? Ela recusa?
— Não falei ainda, nem é necessário.
— Pollyanna!
A menina baixou os olhos; não podia suportar a expressão de dor que via no rosto do seu amigo.
— Com que então nem falou a Miss Polly!...
— Não pude, Mr. Pendleton. Na verdade não pude. — balbuciou a menina. — Mas tive a resposta sem fazer a pergunta. E, além disso, eu também quero ficar com ela. — confessou Pollyanna, corajosamente. — O senhor não sabe como tem sido boa para mim... e também já está começando a jogar o contente sem o saber... ela, que nunca esteve contente de coisa nenhuma, o senhor sabe disso. Oh Mr. Pendleton, eu não posso deixar tia Polly... agora!
Houve uma longa pausa. Unicamente o estalidar da lenha na chaminé rompia o silêncio. Por fim o homem falou.
— Sim, Pollyanna, você não pode abandoná-la... agora. Não insistirei mais.
Esta última frase foi dita em voz tão baixa que a menina mal a ouviu.
— Mas o senhor não sabe o melhor de tudo. — recomeçou Pollyanna, entrando na segunda parte. — A melhor coisa possível, juro!
— Não para mim, Pollyanna.
— Sim, para o senhor, Mr. Pendleton! Lembre-se que disse unicamente uma mão de mulher ou a presença de uma criança poderia fazer desta casa triste um lar. Um ou outro... o que disse. Pois bem, eu arranjei o outro... a presença de uma criança... não eu, mas outra.
— Como se você não fosse a única no mundo, Pollyanna! — murmurou o homem, com ternura.
— Não sou única, verá um dia. O senhor é de muito bom coração. Vi isso com os prismas que deu a Mr. Snow, com a moeda que deu a Nancy e com todo o dinheiro que está economizando para salvar a alma dos pagãos.
— Pollyanna! — interrompeu o homem, já furioso. — Acabe com essas tolices, já pedi mil vezes! Não há tal dinheiro para os pagãos. Eu nunca dei um níquel em toda a minha vida, essa é a verdade!...
E Mr. Pendleton ergueu orgulhosamente a cabeça para mais ainda chocar Pollyanna. Com espanto seu, porém, não viu desapontamento nenhum em seu rosto, viu apenas um ar de surpresa alegre.
— Oh! — exclamou ela, batendo palmas. — Estou tão contente de que o senhor não precise procurar menino da Índia para fazer caridade, como as tais da Auxiliadora daqui! Porque assim poderá ficar com Jimmy Bean. Agora estou certa de que o senhor ficará com ele.
— Ficar com quem?
— Jimmy Bean. Ele é a "presença de uma criança" que o senhor tanto quer... e fico muito contente disso! Tenho de dizer-lhe, em nosso próximo encontro, que nem as damas lá da minha Auxiliadora o querem consigo, e o coitado vai ficar bem triste. Mas quando souber que o senhor vai tê-lo aqui, que alegria!
— Sim? — murmurou o homem, sarcasticamente. — Pois fique sabendo que também eu não quero o tal Jimmy. Que absurdo, Pollyanna!
— Quer dizer que não o aceita em sua casa?
— Está claro que não.
— Mas ele será uma "presença de criança"! — exclamou Pollyanna, implorativa e quase em lágrimas. — Além disso, o senhor não pode continuar sozinho... e com Jimmy não ficará sozinho.
— Não duvido, — declarou o homem. — mas prefiro a minha solidão.
Nesse momento Pollyanna, pela primeira vez em semanas, lembrou-se de algo que Nancy lhe havia dito... e ergueu a cabeça em atitude de agravada.
— Quer dizer que para Mr. Pendleton um lindo menino vivinho vale menos do que um velho esqueleto morto que o senhor tem aqui. Pois para mim é o contrário.
— Um esqueleto?
— Sim. Nancy contou-me que o senhor tem um esqueleto no armário.
O homem não pôde resistir. Descaiu para o espaldar da poltrona e riu-se como nunca. Riu-se com tanto gosto que Pollyanna começou a chorar de nervosa. Ao ver isso Pendleton cortou de brusco o seu acesso de alegria.
— Pollyanna, acho que você tem razão... mais razão do que pensa. De fato, compreendo agora que, "um menino vivo" vale muito mais do que um esqueleto... do que "o esqueleto que tenho no armário". A maçada é que a gente nem sempre pode fazer a troca. Em todo o caso, imagino que devo saber mais alguma coisa dessa criança. Fale.
Pollyanna contou tudo quanto sabia de Jimmy.
Parece que aquele acesso de riso havia clareado a atmosfera, ou então a eloquência da menina ao descrever as desgraças de Jimmy de fato abalara o coração do homem. O caso foi que quando Pollyanna saiu dali levava um convite para Jimmy. Pendleton queria que viessem ambos no próximo sábado.
— Oh, estou tão contente... e tão certa de que o senhor vai ficar contentíssimo com ele! — murmurou ela, ao despedir-se. — Eu preciso que Jimmy tenha um lar... e gente que cuide dele, o senhor sabe... ⛅
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